quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O irrelevante

Por Henrique Custódio, no jornal «Avante!»
«Roma e Pavia não se fizeram num dia», rima o provérbio, estribando-se na construção monumental do Império Romano.
Na escola sonâmbula que frequentou, Passos Coelho leu cabulamente a coisa e achou que bastava uma legislatura para «construir um Império» chamado «novo paradigma» e instalado no País de Camões.
Visto assim é como assestar de longe, na planagem dos abutres, perscrutando de alto a devastação produzida pelo «paradigma» da governação abrutalhada que a família Passos Coelho conheceu nas «colónias portuguesas».
Em algumas zonas até faz lembrar as tabancas reduzidas a cinzas vistas do alto, dos Allouette-3 ou dos Nord-Atlas, evolando aos céus a cinza leve e pungente e um cheiro a fumo que penetrava as fuselagens – mas isso era «lá», «nas províncias Ultramarinas» e nesses recessos de memória dorida, com odores adocicados de carne humana queimada.
«Cá» e agora, evidentemente, só cheira ao imenso ridículo das pretensões políticas de uma personagem que, de política, só conjuga o verbo «amarinhar», e do País parece orientar-se pelos «modernismos» do Goebbels português, António Ferro (isto pressupondo que as suas leituras chegaram aí).
O certo é que o País quase milenar, a terra profunda a quem Camões proclamou «Esta é a ditosa Pátria minha amada», a Nação que já foi invadida e ocupada, que já repeliu e expulsou todos os invasores, que já «deu novos mundos ao mundo» numa aventura colectiva que raros povos tiveram o privilégio de realizar, este Povo que se forjou numa entranhada identidade que, várias vezes, lutou até à morte contra tudo e contra todos – incluindo as classes dominantes que, invariavelmente, acudiam pelos poderosos, mesmo que invasores –, este Povo que lavrou guerras civis de Norte a Sul levantando-se contra os poderosos da I Dinastia, que no alvor da II Dinastia repudiou a tutela castelhana e os poderosos que a serviam e entronizou um bastardo que fundou a origem dos Descobrimentos, um Povo que desembocou na mais longa ditadura fascista da Europa, a derrubou e nela construiu um regime democrático com a Constituição mais evoluída do sistema capitalista... eis o terreno que Passos Coelho ousou poluir com um «novo paradigma».
Há, de facto, por aí muita coisa estragada do Portugal que a Revolução de Abril trouxe – um estrago que vem corroendo o regime desde o seu início, pelas mãos exclusivas de PS e do PSD (com ou sem muleta do CDS).
O «novo paradigma», perlimpimpado por Passos Coelho sobre o País, trouxe mais coisas – desarticulou as funções sociais do Estado (Saúde, Ensino, Segurança Social), o Contrato Social, os salários, as pensões e reformas, as carreiras profissionais, as garantias estatais de qualquer espécie e, ainda, o desaparecimento de fileiras de produção e de postos de trabalho que continuam a cair como dominós.
Mas por isso também lhe trouxe um ódio e um desprezo generalizados no País.
E uma anotação histórica: a de ter sido um «estadista» irrelevante e reaccionário.

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